investigações culturais
Missão Fotográfica Joinville
Apresentação
Este livro é resultado de uma missão fotográfica realizada em Joinville/SC, com tema “Cartografias da Cidade”. O processo foi iniciado através de convocatória aberta, na qual foram selecionadas 13 propostas de projetos autorais, as quais foram desenvolvidas durante o ano de 2023, para compor esta publicação. Com o objetivo de explorar as identidades regionais da cidade, os artistas foram questionados sobre a cidade como fenômeno cultural e lugar físico de trocas materiais ou simbólicas, e a partir de seus projetos iniciais, desenvolveram o trabalho de documentação poética, criando interlocução entre os diversos autores, todos residentes em Joinville.
Entendemos que, na contemporaneidade, a fotografia tem papel importante nas nossas referências visuais, memórias e recordações, e no contexto desta missão fotográfica, cada um dos artistas trouxe ao público suas questões sobre a cidade, apresentando e criando leituras a partir das suas vivências para nos fazer refletir e alimentar a memória das próximas gerações.
Uma Missão Fotográfica
Historicamente, as Missões Fotográficas nasceram de um impulso de documentação, ligada ao imperialismo colonialista europeu, que com o desejo de tudo abarcar por meio da imagem técnica levou diversos fotógrafos a missões de documentação ao longo do século XIX. Porém, o conceito de missão no fazer contemporâneo mudou, e ainda que esteja vinculado a uma proposta permanente ou ocasional, que confia a artistas, fotógrafos ou grupo uma documentação sobre um território, atualmente aponta a relevância para a formação de arquivos para a memória, com a criação de documentação que se encontra no limiar entre documento e arte, compreendendo seu valor subjetivo e autoral.
Neste sentido, a Missão Fotográfica Joinville foi pautada no princípio de troca entre diversos olhares para o território joinvilense, e seu resultado é um grande diferencial no momento em que vivemos uma crise de documentação, na qual as representações, inclusive territoriais, se mostram excessivamente repletas de imagens padronizadas e clichês, sem possibilidade de conter identidades, subjetividades, diversidade e muito menos a memória visual a ser deixada para nossos descendentes.
Propondo um retorno a lugares de memória a partir da poética fotográfica, esta missão combinou o trabalho em equipe com as individualidades de cada fotógrafo, para então apresentar esta coleção de ensaios fotográficos, onde a cidade é entendida como lugar de produção artística e cultural diverso, e que assim pode fomentar a relação da produção e pensamento fotográfico contemporâneo como prática local em diálogo com o universal.
A opção por materializar este projeto em um livro está no entendimento de que este é um espaço expositivo democrático e de maior alcance, que se alinha com os movimentos atuais de publicações (feiras, encontros, festivais) muito importantes na formação e difusão dos trabalhos fotográficos contemporâneos.
Arte e Documento
A proposta deste projeto traz em si a contrariedade do debate que coloca em oposição a fotografia como documento ou como arte. Entendemos que em todas as criações no campo desta missão fotográfica estabelecem-se conceitos que permeiam deslocamentos, materializações e desmaterializações e, ainda, abordam identidade e memória. O que vamos encontrar nos ensaios aqui apresentados é a superação da dicotomia arte/documento e a abertura de um diálogo produtivo com o tempo/espaço de um lugar, pois cada trabalho fotográfico nasceu da observação da cidade, mas propicia um outro modo de ver que se insere na práxis criadora.
Desde o advento da fotografia, muitas foram as transformações. Mas, a tensão a respeito da relação entre fotografia e arte ainda reverbera para uma grande maioria de pessoas. E mais, no que se refere à interpretação das imagens fotográficas e seus desdobramentos, grande parte das pessoas permanece na superfície. Como afirma Kossoy (2020, p. 22) , “[...] patinando nas superfícies iconográficas, sem conseguirem relacionar nada além dos seus limites, ainda num estágio, apenas ‘descritivo’”.
Este foi um dos nossos desafios nesta publicação, potencializar o fazer criativo dos autores envolvidos para repensar as cartografias imagéticas da cidade de Joinville e, neste contexto de intertextualidades, redescobrir a expressão como indissociável da forma.
Observando a produção dos treze autores percebemos que a(s) cidade(s) evocada(s) resultam de um substrato criador de quem pensa a partir da imagem como representação, privilegiando a dimensão poética, “[...] realidade moldável em sua produção, fluida em sua recepção, plena de verdades explícitas e de segredos implícitos” (KOSSOY, 2007, p. 44) .
O foco é a fotografia como prática criadora que, ao mesmo tempo, é arte e documento, em um movimento onde os fragmentos da observação da realidade são entrelaçados com as bagagens culturais, subjetividades e expectativas estéticas de seus autores. Estes, com uso da fotografia, elaboram suas narrativas poéticas, mais verossímeis ou mais ficcionais, sugerindo a visualidade de uma realidade que é também narrativa de si e indagando o paradoxo objetivo e subjetivo ao apresentar um documento poético do metabolismo social de uma cidade diversa.
Os Ensaios
Começamos pela proposta de Paolla Victória, que compôs seu ensaio através dos reflexos onde podemos nos projetar, e nos jogos de luz e sombra que mostram e escondem. Efeitos corriqueiros, mas que exigem muita sensibilidade para percebê-los como poesia, como expressado pela própria artista: “fui desvendando trajetos através de vestígios e do não dito, do que está lá e por vezes não é visto”. O ensaio nos indaga: como os vazios, que estão por toda parte, participam da nossa construção individual e coletiva? O resultado pode não falar estritamente sobre Joinville, mas nasceu da observação dos seus vácuos e dos vazios e pausas necessárias às questões ordinárias da vida em qualquer cidade.
Roseli Sartori tinha a intenção de pesquisar a conhecida Rua Dona Francisca, que para ela é cotidiana, e da qual já possuía algum acervo, tanto do trajeto, como das casas em ruínas invadidas por vegetação. E foi a partir desse material, e principalmente da ideia das ruínas e da história da figura de Dona Francisca nos relatos sobre a cidade, que a artista construiu sua narrativa. Dona Francisca de Bragança, filha do imperador D. Pedro I, foi a responsável pelo primeiro nome dado a região, Colônia Dona Francisca, dada como dote da princesa, e que posteriormente ganha o nome atual devido ao casamento da monarca com Francisco Fernando de Orléans (1818-1900), Príncipe de Joinville, terceiro filho do rei francês Luís Filipe I. Transitando entre memória pessoal, ruínas reais e rastros da história, Roseli transforma a clássica imagem da princesa em um fantasma sobre a cidade.
Fahya Kury Cassins propõe pensar Joinville nos seus limites visuais de classes, na arquitetura e nos limites geográficos, com base na crítica e na contradição capitalista. Para a autora, “Amar e odiar Joinville é a contradição que muitos de nós, joinvilenses, vivemos”. Para construir seu ensaio, Fahya desenvolve uma síntese visual de oposições, que para ela representam os paradoxos de um conjunto de valores construídos culturalmente e criam uma mentalidade dominante, que exala contradições.
Larissa Halfen vai ao Beco do Caminho Curto, comunidade quilombola ignorada por grande parte dos que vivem em Joinville, cidade que de alguma forma inviabiliza os descendentes de escravos que vivem naquelas terras, o que para a artista, mostra “um retrato da nossa sociedade, repleta de preconceito e racismo”. Para criar sua narrativa, Larissa pautou sua pesquisa nas lideranças femininas que mantêm viva sua cultura, que lutam por seus direitos, deixando esta herança para as próximas gerações.
O ensaio de Fábio Moreira reafirma que Joinville é uma cidade plural e diversa, e traz sua pesquisa sobre uma parte do território joinvilense que permanece desconhecido para a maioria das pessoas. Na cidade mais populosa de Santa Catarina, conhecida pela imigração alemã e por sua vocação industrial, o autor destaca a comunidade do Morro do Amaral - uma das mais antigas do município e formada por descendentes de indígenas, negros, lusos e açorianos, e que ainda encontra na pesca sua principal fonte de renda. Neste contexto, o autor destaca a rotina definida pelo ritmo das marés, em um recorte onde o protagonismo das mulheres pescadoras é enaltecido. Segundo ele, “um pequeno fragmento do vasto oceano de histórias que fazem parte do Morro do Amaral”.
Tirotti desenvolveu sua pesquisa a partir do pensamento que vai da periferia ao centro, e nos apresenta relatos que envolvem sonhos de três personagens reais, para nos indagar sobre desencontros sociais, necessidades e ausências. Cada um dos três ensaios (Babitonga, Mangue e Magia) possui seus personagens, que são apresentados pelo artista:
- “Sr. Airton nasceu e vive às margens da baía da Babitonga e aos 65 anos ainda lembra, quando jovem, que transitava de barco da casa para qualquer lugar que precisasse ir. Na mesma casa de seus pais, tece e remenda a sua própria rede, objeto de seu trabalho e alimento, retomado depois de sua aposentadoria. Airton é a conexão entre a terra e o mar no bairro Espinheiros.”
- “Seu Bille, vindo de outras e tantas paragens, escolhe a cidade como uma nova origem, depois de tantos caminhos e lutas, aceita o que a vida lhe apresenta, dentre várias atividades, uma delas foi erguer os lares de seus filhos e agora levantar, tábua a tábua o seu próprio lar, num canto que para ele é o seu, não mais no Jardim Iririú, se muda para o ‘Panágua’, assim carinhosamente chamado por seus moradores. Bille é vida, como o mangue, entre o rio e o mar.”
- “Dos muitos que escolhem Joinville está o Elias, lá de Belém do Pará veio criar a diversão, aproveita a brisa urbana para soltar bolhas de sonhos, um trabalho mágico ao soltar bolas de sabão, por sua regência, resiliente e resistente invade a rotina do trânsito, pelos ônibus, carros, crianças e famílias, cruzam as suas histórias de ilusões que valem ser percebidos e capturados.”
Assim, o autor revela protagonistas de uma história do hoje, que se faz nas relações ordinárias que constituem as marginálias do corpo cultural presente no território vivo da cidade.
Lais Silveira trouxe o desafio de representar aspectos intangíveis da relação natureza e urbanização, explorando marcas deixadas pela natureza nas brechas e rachaduras do concreto, voltando seu olhar para detalhes de um campo sensível dos seus percursos rotineiros. Dando a ver a resistência da natureza e segundo ela, “utilizando o potencial da arte para “desmascarar” a visibilidade que já conhecemos”.
Luiz Wayller percebeu que a visão aérea trazia à paisagem urbana uma certa organização. O tumulto embelezado, que apesar da quantidade de carros que mostra, não transmite a sensação caótica da hora do rush. Para ele, “de cima, no trânsito, cada um de nós é anônimo, mais um carro, uma bicicleta, um pedestre”. Através do ensaio, o espectador é transportado para dentro do tecido urbano de Joinville.
Dorothy Mendes norteou sua pesquisa em uma característica meteorológica pela qual a cidade é conhecida: a chuva. No ensaio “Precipitação”, a autora faz um relato visual dos dias chuvosos que interferem no cotidiano, e que apesar de trazer dificuldades, segundo ela “traz para a cena a poesia das sombrinhas e guarda-chuvas de diversos modelos, cores, tamanhos, além dos reflexos e texturas que a chuva proporciona aos registros fotográficos”.
Uma galeria efêmera é o que Amcle Lima torna permanente neste livro, e segundo ele nesta galeria “ninguém podia pendurar quadros, porque as paredes eram do lado de fora”. O autor celebra em seu ensaio uma Joinville que pulsa arte, mas uma arte em seus muros, paredes de casas abandonadas e qualquer cantinho que se possa pintar.
Retratar o cotidiano da cidade na perspectiva dos passageiros de ônibus foi a pesquisa de Leandro Moreira, mostrando o ponto de vista praticado por grande parte da população da cidade. Para ele, “a vida urbana é sobre a classe trabalhadora da cidade”. Cada janela desenrola narrativas e revela conexões e movimentos que convidam o espectador a se envolver com as histórias que contam.
Para Eduarda Ramos, viver em uma cidade essencialmente industrial ofusca a arte e o entretenimento; e por vezes traz a sensação de enclausuramento. Sua pesquisa traz um relato do viver de uma jovem em Joinville, seus espaços de suspiro de vida em meio à rotina corrida da sobrevivência; e, segundo ela, “um lembrete de que há mais da vida além daquilo que a agenda enquadra, quero mostrar lugares acessíveis física e financeiramente; que para mim, são uma clareira aberta e iluminada em um mar de fumaça escura”.
Luiz Henrique explorou os morros de Joinville com sua bicicleta e, de ponto a ponto, criou perspectivas inusitadas para, em suas palavras, “de cada pico nos revelar uma nova face da cidade”. Com suas imagens, que finalizam este livro, o artista desafia nossa percepção e nos propõe ver esta cidade cheia de possibilidades, encontros e desencontros entre centro e periferia.
Daniel Machado e Lucila Horn